quinta-feira, 6 de outubro de 2011
Olhos marejados
Tirei o pó de cada canto da casa, como sempre fora meu costume de pseudo- alérgica, arrumei tudo, e ainda redigi e readeqüei dois projetos e suas planilhas orçamentárias. A noite chegou quente... a ordem que tudo estava fez que eu voltasse a me enxergar...Sim eu havia me perdido no caos de meus devaneios e de minha casa... O ambiente sempre reflete algo interior e vice- versa... Depois do banho aproveitei para tirar também o excesso de sobrancelhas e ao olhar as minhas unhas tive o humano desejo de saber fazê-las. Olhando meus olhos no pequeno espelho que distorcia minha imagem com o aumento, pensei como tendemos a distorcer as coisas na vida cotidiana. Eu não queria maximizar nada, nem distorcer... Meu período era de alinhamento, como o fazia agora com as sobrancelhas... Rezei para que o alinhamento de minha vida fosse tão simples como alinhar as sobrancelhas e dormi.
Tive sonhos com Marco, com Angelo, com Théo e com Amanda, a fadinha libélula. Mais uma que ganhava nome na minha realidade, quase romântica, quase onírica, desesperadora... O que lembro é que estava na porta do prédio de Marco, com minha mochila as costas, e que ouvia vozes vindas lá dentro. Meu medo e minhas constantes dúvidas faziam que eu recuasse. E logo eu já estava correndo. E ao correr, me via na ponte dos trilhos do trem de minha infância. E mesmo temendo a altura, e vendo as águas barrentas que passavam no Rio, lá embaixo, entre os trilhos, eu tinha que atravessar. Quando estava no meio da ponte a água lá embaixo mudava, e ficava azul, cristalina, como se refletisse a cor do céu.
Nas águas eu via o reflexo de duas crianças sentadas na ponte dos trilhos do trem, jogando pedrinhas na água, no azul, que fazia desenhos cada vez mais próximos de meus pés. Eu queria olhar para trás para ver quem eram aquelas crianças, mas tudo que via era o reflexo e suas risadas, e ao ouvir suas risadas percebia, que as crianças eram eu e Marco... Na ponte de nossa infância, num tempo longínquo, quando nossas famílias eram ainda inimigas, e o território de paz de nossos exércitos era naquela ponte. Onde desfolhávamos mal me quer, bem me quer... Eu queria olhar para trás, mas não conseguia, não podia, temia. No reflexo eu via o Marco garotinho estender a mão com a flor amarela... “ Esta eu não vou desfolhar, é sua!” Eu sorria, e dizia "Mas eu não te amo Marco, eu amo é teu amigo." Ele então desfolhava o mal me quer e dizia... “Mentira! Deu bem me quer!”, “Mas eu te quero bem...mas não te amo...” a cada passo que eu dava a água turquesa da ponte dos trilhos do trem...que refletia as duas crianças como se fosse um cartão de apaixonados era mais próxima de meus pés. E a vontade de virar e olhar no fundo dos olhos delas maior ainda. Marco e eu apenas duas crianças... Ele tinha razão...o Marco criança, do reflexo do rio de meu sonho, tinha toda razão, um dia eu o amaria muito...Tanto quanto os eram os mal me queres que ele desfolhava. Quando eu me voltava para enxergar as crianças e dizer para a garotinha dos grandes olhos dizer sim, o telefone tocava, com as coordenadas de onde deveria ir, e o chão azul, cor de tinta, a ponte, os trilhos, o mal me quer bem me quer sumiam... E eu estava de volta a porta do apartamento de Marco, com minha mochila nas costas, mas desta vez sem os gritos de antes...A porta se abria para um corredor onde estava Théo, que para variar segurava minha mão, enquanto a fadinha libélula, ou melhor, Amanda, sua talvez pseudo namoradinha, olhava com olhos volpianos e remexia próximo a face suas assustadoras unhas vermelhas, extremamente bem feitas. “Está tudo calmo agora, estávamos preocupados...” Uma outra porta abria-se para um outro corredor de onde surgia o quase gigante e belo Ângelo, numa pausa de trabalho surgia para me ver naquele lugar que era uma sala de espera, em que eu feliz da vida e ansiosa esperava, não sei bem o que...Ele chegava intenso envolvendo-me com uma voz estonteante de radialista, e me abraçava rolando comigo em amassos de adolescentes pela parede e convencendo-me a beijá-lo... Eu resistia, nem sei por que... e ele falava de volta ao meu ouvido, e me beijava demoradamente, eu sentia sua língua na minha boca a fazer voltas e de volta ao meu ouvido a dizer segredos de liquidificador e de volta a boca a brincar com a minha até que nosso infinito beijo era interrompido pela batida de uma porta que me arrastava quase num sopro novamente para diante da entrada do apartamento de Marco, mas eu já não estava com a mochila nas costas.
Ao abrir a porta ele me olhava, e o que me chamava a atenção, não eram seus lábios de outdoor, mas seus olhos, quase profundos, seus olhos rasos d'água, seus olhos desesperados a me contar que sua vida transformara-se... E nós humanamente nos abraçávamos fortemente, num abraço longo e quase agonizante. Num desejo não corporal como sempre parecera ser, mas numa vontade de encontrar um no outro a compreensão, a paz. Ao olhar novamente para seus olhos eu também tinha os olhos marejados! Despertei! Era madrugada ainda, e é óbvio que eu não conseguira mais dormir.
Chegava a enxergar seus olhos diante de mim, sentir um cheiro de maresia que partia do seu olhar. Algo acontecera!
E eu queria ser apenas uma pessoa rancorosa, e não permitir que ele sequer tivesse a oportunidade de me ter novamente em sua presença, mas eu não era assim e nunca seria... Este era o meu lado santa, Maria, que sempre acolhia até o mais torpe inimigo. Embora ele não fosse meu inimigo tinha causado uma tempestade em minhas emoções, suficientes para nunca mais lhe olhar nos olhos. Mas sempre carregara comigo o princípio de que o erro dos outros não justifica minhas atitudes. Marco viria! Agora eu tinha certeza. Algo estava acontecendo com ele eu tinha certeza. Ele estava angustiado. Aquele sonho representava meu mundo...
Tinha Théo a prender minha mão, com o seu satélite de nome Amanda a voar em sua órbita alienada.
Esperava o abraço de Marco desde sempre,
e desejava loucamente, como nunca, os fantásticos beijos de Ângelo...
Eu tinha tudo isto mas ao final estava ali...deitada só no meio de minha grande cama vazia a cama que sonhara, mas vazia!
Rezei por Marco, Théo e Ângelo. Pedi que Deus protegesse Marco trazendo-o em segurança até a porta de minha casa. Pedi para que eu fosse desatada de Théo. E rezei aos céus que Ângelo de alguma forma me tivesse eu seus pensamentos e que não demorasse o dia de ter os beijos do sonho na realidade.
Pensando nos beijos de Ângelo novamente adormeci e novamente sonhei com seus beijos e novamente fui acordada com o olhar angustiado de Marco...
Ele estava solteiro! Eu tinha certeza. E dentro de algumas horas estaria na porta de minha casa para me revelar tal feito e dizer que eu era sua vida, sua história mais antiga. E eu lhe diria que... O que eu lhe diria??? Ah dúvidas de sempre... ah, perturbações...
O telefone tocou. Coisa rara mas por aqueles dias o telefone tocou muito... Marco me dizendo suas coordenadas e que estava bem... (eu sempre gostara desta preocupação que ele tinha de dizer onde estava, e pedir que eu avisasse que havia chegado bem) e depois...
... duas ligações perdidas de Ângelo... Sim ele havia ligado e o telefone estava dentro da bolsa e eu não havia escutado...
E as ligações de minha Irmã insistindo com as bodas de ouro,
as ligações de Théo querendo contar algo e perguntando se já estavam prontos os projetos.
Minha irmã ligara várias vezes
e depois dela ligou o grande homem da minha vida, meu pai... Ligou para dizer que se eu não quisesse não precisava vir para o espetáculo.
"Que espetáculo pai?"
" O show das bodas de ouro... " e depois disse
“Filha te cuida sempre...”
Era isto, eu precisava cuidar de mim. Mas agora o que eu iria fazer era cuidar dos preparativos para o jantar de Marco, a hospedagem de Marco e das tarefas que Théo me solicitara... Mas ao longo do que restava do dia eu me detive várias vezes a suspirar pela lembrança dos beijos de Ângelo...
Eu não sabia o marco que aquele dia seria em minha vida, e nem ao menos em que pilares transformariam-se dentro de minha história todos aqueles personagens quase fantásticos de meus sonhos... Mas naquele dia algo mudava, havia uma curva de meu destino que ali, entre a segurança da mão de Théo, o mergulho insensato nos olhos marejados de Marco, e o labirinto estonteante da voz e dos beijos de Ângelo... se desenhava...Naquele momento eu estava sendo reescrita...
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