quinta-feira, 6 de junho de 2013

De Areia



Madrugada...
Olho da janela a noite quieta.
Ar parado! 
Há uma atmosfera diferente! 
Daquelas que faz até o vento adormecer! 
Silêncio...
Vejo que alguém acena do outro lado da rua... 
A noite fica ainda mais quente... 
Há uma luz sutil do poste...
Mais outro aceno e é como se eu visse tudo mil vezes mais claro... 

Um instante e a janela não mais existe...
como se eu fosse sugada 
pelo zoom de seu olhar oblíquo
por uma força arrebatadora inexplicável! 

Estamos lado a lado...
Eu disse que ele poderia me chamar a hora que fosse.
Penso que ele está com problemas... 
mas ele me parece trânquilo
me revela que vê tudo com maior consciência agora...
Quero entender de que tudo ele me fala...

A calmaria do vento anunciava já antecipadamente que algo inusitado aconteceria.  

"Estou meio bêbado." 

diz ele enquanto se joga de braços abertos na areia.
seus grandes olhos grandes... 
tão brilhantes quanto as estrelas do céu
olham longe eu percebo
e por um breve instante quase me sinto uma das estrelas 
que seu olhar busca.

Sorrio... pensando no parodoxo que há em estar 'meio' bêbado...
existem coisas que não cabem na metade de si mesmas,
meio bêbado é uma delas... 
Eu já havia percebido...
ninguém em sã e sóbria consciência chama alguém aquela hora para passear na praia... 

Divaga dizendo-me que agora vê as coisas com mais consciência... 
sua revelação me parece ambígua...
seu ato totalmente insconsciente...
tanto quanto o meu!

Admiro a beleza do momento...
ainda que toda a poesia vivida ao lado de um bêbado possa desmanchar-se a qualquer segundo... 
estou segura que basta o álcool entrar para as verdades saírem. 
um bêbado é sempre efêmero e verdadeiro



não sei ao certo a que se refere e penso que
 eu deveria ter aberto a garrafa de vinho aquela noite mas me detive... 
meu delírio limitado
o máximo que me permito é me ver como uma estátua,  
uma escultura de areia... a compor a paisagem 

e embora esteja quente e ele chame a atenção para a calmaria do ar
apontando para as palmeiras imóveis diante do mar calmo.
Observo a ele e a paisagem como quem olha uma fotografia.
Não preciso que ele me diga mais nada para perceber que ele está saboreando aquele momento.


Tiro as sandálias dos pés calmamente como num ritual silencioso
como alguém que deseja despir-se das atitudes mais mundanas para entrar num local sagrado...
Lhe revelo um de meus mais infantis segredos:

"Sabe que eu amo rolar na areia?" 

Seus lábios se expremem um no outro...e ele dá um sutil sorriso de canto de boca...
um sorriso que ele tem só para mim...
seus olhos grandes
oblíquos novamente
safados
e doces

"é sério!"
repito! 

"sozinha?"
ele dá a tréplica mais do que rápido
e ainda que esteja estático como o ar
há uma ansiedade dissimulada pela resposta que darei. 
Quase um suspense! 
Uma adrenalina... 

"sozinha eu já fiz várias vezes...mas agora estou sentada aqui ao teu lado..."
 Seguro sua mão 
 ou ele segura a minha não sei 
Escuto apenas ele dizer
"agarrada!"
e agarrados como se fossemos um único corpo 
rolamos pela areia
e rimos 
suas mãos envolvem meu corpo
e rolamos para um lado e para outro
atravessamos a praia assim...e voltamos
ao mesmo lugar

somos feitos de areia também
dois brigadeiros no açucar cristal 

sem saber o que dizer falo: 

"posso invadir a paz de sua praia..."

falo da praia... mas quero mesmo é invadir a vida dele 
sei disso embora não seja sincera comigo mesma como um bêbado deve ser... 
e antes que meu estômago possa doer de ansiedade
ele responde:

"sabes chegar sem pertubar!"


tudo é paz
os beijos os mais lentos e silenciosos possíveis
como se não pudéssemos despertar a noite 

 depois de um tempo ...que jamais saberia precisar 
estamos em paz
em nossa praia secreta, sagrada e particular
suas mãos tiram cada um dos grãos de areia de meus pés
coloca minhas sandálias
me puxa pela mão 
nos sacudimos como cachorros 
para tirar a areia do corpo 
e de mãos dadas desaparecemos naquela paisagem

da janela vejo
ele acenar 
está prestes a amanhecer
mas há nevoeiro
que cobre tudo 
vejo sua luz em meio a névoa
e me permito pensar na magia daquela noite
 não o vejo mais
mas sinto que leva consigo
aquela sensação de paz
pela noite
mesmo sem vê-lo
fico olhando-o da janela
a perder-se pela noite quieta.
Ar parado! 
Há uma atmosfera diferente! 
Daquelas que faz até o vento adormecer! 
Silêncio...